Autoria: Essential Madeira
Provavelmente não haverá muitas pessoas que já tenham ouvido falar, ou muito menos provado, uma receita de Carne da Noite, de Carne Santa, Carne Frescal, ou até um Caldo da Romaria. Nas cartas dos restaurantes é raro encontrá-los e mesmo nas casas madeirenses algumas destas tradições têm vindo a perder-se com o tempo.
A investigação e recolha de receitas e segredos deste património gastronómico, incluindo os vinhos, é um dos objetivos da Confraria Gastronómica da Madeira, um trabalho desenvolvido desde o ano 2000. Alcides Nóbrega, o presidente, confirma que é raro encontrar pessoas e locais que ainda cozinhem receitas antigas, porque muitas “não são acessíveis para as pessoas incluírem na sua ementa, no dia-a-dia”.
Um exemplo: a cabra seca, receita tradicional da zona oeste da Madeira, em especial da Calheta. É um prato que exige algum tempo de preparação, pois é necessário salgar a carne de cabra, deixá-la a tomar gosto durante pelo menos três dias, e após esse processo é ainda necessário pendura-la na chaminé por mais 5 dias, para que possa secar.
Hoje os tempos são outros e falta o tempo e a oportunidade para preparações com este nível de detalhe. Mas há outras receitas que ainda são preparadas e até podem ser encontradas em alguns restaurantes.
É o caso de São Vicente e o tradicional Caldo da Romaria, que pode ser provado no restaurante Quebra Mar. É um caldo de carne com batatas, cenouras e cebolas, preparado pelos romeiros à chegada a São Vicente, após horas e às vezes dias de caminhadas. Os ingredientes eram transportados pelos romeiros e o caldo era preparado na pausa da caminhada. É um prato simples e “com bastante sustento”, diz Alcides Nóbrega.
A Carne Frescal, com origem em Santa Cruz, é uma receita feita com carne de porco e três tipos de vinho: Madeira, branco e tinto. É também temperada com pimentas, sal e segurelha. Antigamente, esta carne, depois de cozida, era conservada durante dois a três meses num tacho de barro e coberta com banha de porco. Para ser novamente servida, era retirada do tacho e passada na frigideira.
A Carne da Noite é outra tradição, “como atualmente existe a carne de vinha-d’alhos”. Típica de Santana, é feita com carne de porco temperada com vinho da terra, segurelha, alho, pimenta, louro e sal. Já foi reintroduzida em alguns restaurantes em São Jorge, como a Casa de Palha.
Quanto à carne Santa do Porto Moniz, que mistura carne de porco e carne de vaca, ainda não está totalmente reintroduzida, porque muitos destes pratos, para poderem ser apresentados em restaurantes exigem reserva prévia.
Alcides Nóbrega reafirma que o propósito da Confraria Gastronómica da Madeira trabalhar no sentido de trazer as tradições gastronómicas da ilha para os restaurantes. Trata-se de “reintroduzir os pratos típicos de cada concelho”, nas ementas locais, o que na prática representa um desafio. Este trabalho passa pela recolha de “algum receituário já perdido tanto na Madeira como no Porto Santo”.
Todos os meses os membros da confraria deslocam-se a uma localidade no sentido de levar as pessoas a terem conhecimento das receitas e aprenderem a confecionar os pratos, para que depois os possam incluir nas ementas, para que estes pratos “comecem a ter alguma procura e possa haver uma afirmação de concelho a concelho”. “Somos uma região de turismo, e quando o turista vem, quer comer coisas típicas de cada local que passa”, refere Alcides Nóbrega.
Este trabalho tem dado frutos, mas é um processo lento. Mas já começam a surgir algumas destas receitas ao lado de pratos mais populares da gastronomia madeirense, como a espetada, o milho frito, o filete de espada-preto, o bife de atum, o bolo-do-caco, ou o bolo-de-mel. Mas Alcides Nóbrega destaca que é necessária uma oferta maior. “Não podemos ficar só pela espada, espetada, e bolo do caco, porque existem muito mais produtos típicos e de grande qualidade a serem aproveitados aqui na ilha”.
Para a qualidade da gastronomia são necessários bons produtos. Alcides Nóbrega destaca a qualidade dos produtos madeirenses. “Qualquer chefe que vem à Madeira fica maravilhado com os nossos produtos, a nível de qualidade e frescura” refere. O objetivo é saber tirar o melhor proveito disso.
O papel da confraria passa por desafiar os cozinheiros dos restaurantes a reproduzir os pratos, dando assistência no que é necessário, inclusive fornecendo os próprios ingredientes. No caso do chícharo, leguminosa muito comum no Porto Santo, foi a confraria que forneceu praticamente todo o receituário base. “Não existiam sementes para replantá-lo e nós tivemos que trazer de outra parte do país e reintroduzir no Porto Santo”. O desafio de usar o chícharo foi aceite pelo Chefe Manuel Santos do Vila Baleira e pelo restaurante Panorama.
Alcides Nóbrega explica que todos os anos, no aniversário da confraria, no final do mês de abril, realizam-se quatro dias de festa. “Deslocam-se muitas confrarias de Portugal e da Europa para nos visitar nessa altura e conhecer a realidade do que existe cá a nível de produtos”. Nos quatro dias da celebração a ementa é variada.
No entanto, há um prato que não deixam de incluir pois tem imensa procura – o panelo. Esta refeição é feita no Chão da Ribeira, e assemelha-se a um cozinho à portuguesa mas servido de forma diferente: as panelas são derramadas em cima da mesa e os convidados vão comendo diretamente da mesa. “É algo que atrai e impressiona bastantes pessoas.”
Apesar de haver confrarias em Portugal só dedicadas aos vinhos, na confraria Madeirense optaram pela gastronomia e por incluir os vinhos que também estão cada vez mais a apostar na qualidade e diversidade.
O objetivo das confrarias é também conhecer e dar a conhecer a gastronomia típica de todo o mundo, e partilhar dessa forma a cultura nessa área.
Alcides Nóbrega finaliza destacando a importância de preservar a nossa gastronomia por toda a ilha, nunca negligenciando a qualidade dos produtos que são dados a conhecer, pois todo o estabelecimento tem a responsabilidade e obrigação de representar qualquer produto na sua verdadeira essência.
In search of tradition
Dishes, products, culinary secrets… Confraria Gastronómica da Madeira is dedicated to researching the eating habits we had in days past.Author: Essential Madeira
Nowadays, the names Carne da Noite, Carne Santa, Carne Frescal or Caldo da Romaria are not known to many, and fewer still, will have tasted the recipes for which they stand. One seldom finds these dishes in restaurant menus, and even in Madeiran households these traditions have come to be lost with time.
Researching and collecting the recipes and secrets of this gastronomic heritage, including wine, is one of the goals of Confraria Gastronómia da Madeira, the gastronomic guild which has been developing this work since the year 2000. Their president, Alcides Nóbrega, confirms that it is rare to find people and places that still cook these ancient recipes, because many ‘aren’t accessible for people to include in their day-to-day menus’.
Dried goat, for example, is a traditional recipe from the west of Madeira, especially Calheta. It is a dish which demands time for preparation, because it is necessary to salt the goat meat, and leave it to absorb the flavour for at least three days, only then hanging it near a chimney for another 5 days, so it can dry.
The times are different, and time itself is in shortage when it comes to preparing such detailed dishes. But there are other recipes that are still practices and can be found in some restaurants.
Such is the case of the traditional Caldo da Romaria – literally meaning pilgrimage stock – in São Vicente. It is a meat stock with potatoes, carrots and onions prepared by pilgrims coming to São Vicente, after many hours, sometimes days, of walking. The ingredients used to be carried by pilgrims and the stock would be prepared when they paused their walk. It is a simple dish, ‘with lots of sustenance’, says Alcides Nóbrega.
Carne Frescal, from Santa Cruz, is a recipe made from pork and three types of wine: Madeira wine, white wine and red wine. It is also seasoned with peppers, salt and summer savoury. In olden days, after cooking, this meat would be preserved in clay pot for two months and covered in lard. To be served it would be taken out of the pot and fried in a pan.
Carne da Noite is another tradition, ‘much like the modern carne vinha d’alhos’. Typical in Santana, it is made with pork, seasoned with local wine summer savoury, garlic, pepper, bay leaf and salt. It has been included in the menus of some restaurants in São Jorge, like Casa de Palha.
Porto Moniz’s Carne Santa which mixes pork with beef, has not yet been filly reintroduced because many of these dishes require previous bookings of they are to be presented at restaurants.
Alcides Nóbrega stresses that the goal of Confraria Gastronómica da Madeira is to work so that the island’s gastronomic traditions can be brought back into restaurants. It is about ‘reintroducing the typical dishes of each town’ in the local menus, which is a practical challenge. This work includes collecting ‘some recipe collection that is lost in Madeira and in Porto Santo’.
Every month, the members of the guild will go to a place to make people aware of the recipes and teach them how to cook the dishes, so they can then include them in their menus and ‘trigger a demand, and each town can then start affirming themselves’. ‘We’re tourism region, and when the tourist comes, he wants to eat what is typical of each locale he passes by’, mentions Alcides Nóbrega.
This work has already borne fruits, but it is a slow process. Though some of these recipes have already started to make an appearance next to the more popular dishes that are part of Madeiran gastronomy, like the espetada, fired corn, black swordfish filet, tuna steaks, bolo-do-caco bread and molasses cake. But Alcides Sousa emphasises there is a need for more variety. ‘We can’t be limited to swordfish, espetada and molasses cake because there are many more great quality typical products to be enjoyed here on the island’.
Quality gastronomy requires quality products. Alcides Nóbrega highlights the high level of Madeiran products. ‘Any chef who comes to Madeira is amazed with our products in terms of quality and freshness’, he mentions. The goal is to make the most out of that.
The guild’s role is to challenge restaurant cooks to reproduce the dishes, assisting them where necessary, even supplying the actual ingredients. For the chickpea, a vegetable very common in Porto Santo, it was the guild who supplied most of the foundational recipe. ‘There were no seeds to replant it so we had to bring it from another part of the country and reintroduce it in Porto Santo’. The challenge to employ the chickpea was taken on by Chef Manuel Santos, of the Vila Baleira, and by the Panorama restaurant.
Alcides Nóbrega explains that every year, on the guild’s anniversary in late April, they hold a four-day celebration. ‘Many guilds come from Portugal and Europe to visit us then and get to know the reality of what we have here product wise’. The menu for the whole four days is varied.
However, there is one dish they cannot afford not to serve owing to the immense demand that there is for it – the panelo. This meal is cooked in Chão da Ribeira and resembles the Portuguese stew but though it is prepared differently: pots are spilt over the table and guests eat directly off it. ‘It is something that attracts immense people’.
Though there are guilds in Portugal that dedicated themselves exclusively to wine, the Madeiran guild opted to focus on gastronomy and include wines since they are betting more and more on quality and diversity.
The goal of a guild is to learn and share the typical gastronomy of the world and thereby share thereby promote the culture of that area.
Alcides Nóbrega ends on a note that highlights how important it is to preserve our gastronomy throughout the island, never foregoing the quality of the products that are being shared since the whole establishment has the responsibility and obligation of representing the product in its true untainted essence.
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