Já alguma vez entraram num restaurante local na Ilha da Madeira onde não viram na ementa Peixe-espada Preto com banana?
Claro que não! A espada preta é um dos pilares da cozinha madeirense e já o é há séculos. Porém, aconselhamos que o prove antes de vê-lo nas mesas de mármore do movimentado Mercado dos Lavradores. É possivelmente a criatura mais feia que já viram: com seu corpo comprido em forma de enguia negra, seus enormes olhos de mármore e suas fileiras de dentes afiados como navalhas numa boca gigantesca. Nada apetitoso! Terão prestado atenção nas aulas de ciências na escola e lembram-se que aqueles olhos enormes são um indicador da profundidade onde vive este predador: no caso das águas à volta da Ilha da Madeira, algo entre os 600 e os 1600 metros de profundidade.
E como é que os pescadores descobriram que havia um tesouro delicioso tão fundo no oceano?
Não podemos esquecer que a Ilha da Madeira é o topo de uma montanha marítima de 6km de altura e que apenas cerca de 1862 metros estão acima do nível do mar. Portanto, o mar fica muito fundo muito rápido à medida que nos afastamos da costa.
As pessoas pescam para subsistir na Madeira desde o início da colonização, há 600 anos. Uma das principais capturas comercialmente importantes era o atum, e para capturar esses príncipes dos mares era necessário ter um bom isco. O melhor é a lula e, para apanhá-la, os barcos saem à noite e acendem luzes fortes para atraí-las. Contudo, há séculos, antes da invenção da eletricidade, os pescadores precisavam de combustível para acender as suas tochas, e o mais facilmente disponível era o óleo de peixe, nomeadamente de Peixe de Azeite, de tubarão e de esqualo. Isso também era usado para iluminar as casas … não exatamente uma cheirosa vela de aromaterapia!
Ora, foi um dos pescadores que se especializou em Peixe de Azeite que encontrou a necessidade de ir cada vez mais fundo para os encontrar, que numa noite de 1839 arrancou das profundezas uma criatura muito diferente: o bicho comprido e dentuço assustou-o, por isso levou-o a um conhecido naturalista que vivia na Ilha da Madeira na altura: Richard Thomas Lowe. Este último nasceu em 1802 e se formou em Cambridge em 1825, ingressando imediatamente no clero. Tornou-se capelão da Igreja Inglesa na Madeira em 1832 e a maior parte do seu tempo livre era dedicado à descoberta, classificação e preservação da flora e fauna madeirenses. E foi o reverendo Lowe que deu àquele longo peixe negro até então desconhecido o seu nome científico: Aphanopus carbo, uma clara referência à sua aparência – aphanopus, com pés invisíveis, pois as suas barbatanas pélvicas não são visíveis, e carbo, do grego, preto. Esse espécime ainda existe hoje porque foi preservado e está em exibição no British Museum em Londres.
Rapidamente os pescadores começaram a pescar espada e a melhorar as formas de o fazer. Ainda hoje o método é muito rudimentar: um aparelho com várias linhas compridas com vários ganchos nas pontas. Hoje em dia a recuperação das linhas é feita com motores, mas imaginem o trabalho árduo que costumava ser puxá-las manualmente: quase 1000m de linha! A partir de entrevistas com pescadores nos anos 70, podemos descobrir um fato interessante: que a primeira parte de puxar as linhas era mais difícil porque com a diminuição da pressão à medida que os peixes subiam, fazia inchar a sua bexiga natatória e eles flutuavam naturalmente até a superfície. A diferença de pressão, na maioria das vezes, matava os peixes, mas há relatos de alguns deles a abrir e a fechar as grandes mandíbulas ao chegarem à superfície, acabando com o mito urbano de que ninguém jamais viu uma espada viva. Certamente, ainda não há nenhum vídeo ou registro fotográfico desses longos e esbugalhados seres!
O principal centro de pesca da espada na Ilha da Madeira é Câmara de Lobos, a vila piscatória que Winston Churchill achou tão pitoresca que a pintou. Aqui ainda se encontram os barcos coloridos prostrados como lobos marinhos ao sol na praia de calhau, os pescadores a consertar o seu equipamento e peixe a secar ao sol. Antigamente, teriam visto crianças a ajudar a esticar e entrelaçar as linhas, pois elas costumavam ser feitas de cânhamo, não de nylon. O processo de cura do cânhamo era complexo e envolvia deixá-lo numa pasta feita com o nosso Ensaião (uma suculenta local que cresce nas rochas) que fermentava e adicionava resistência às linhas de cânhamo.
A isca preferida é a pota limão (Ommastrephes pteropus), embora outros cefalópodes ou peixes pequenos possam ser usados nas linhas que são baixadas para entre 600 e os 1000 metros, onde a espada sobe para se alimentar todas as noites. Na Madeira muitas vezes se vê uma linha de luzes à noite no horizonte, brincamos que é a nossa auto-estrada para o continente, mas é na realidade a frota de barcos de pesca que sai à caça de lulas com as suas poderosas luzes sedutoras.
Uma nota adicional sobre a importância deste peixe é que graças à amizade que cresceu entre os homens que limpavam a espada no mercado, e o cientista alemão Gunther Maul, que foi diretor do Museu de História Natural do Funchal durante décadas, foram descobertas pelo menos duas dúzias de novas espécies de peixes de profundidade nos anos 40 e 50. Os homens guardavam para o cientista tudo o que encontrassem no intestino da espada, uma predadora voraz, dando-lhe assim acesso a um mundo que não era conhecido pela ciência e ainda inacessível à tecnologia na época.
Inicialmente pensava-se que o peixe-espada preto era exclusivo da Madeira, mas agora sabemos que está presente em três oceanos diferentes, mas em nenhum lugar com tanta abundância e tão imerso na cultura como na Ilha da Madeira.
Hoje em dia, este peixe ainda ocupa um lugar muito especial nas nossas dietas, visto que aparece em muitos dos nossos pratos locais. Já falamos da espada com banana frita. Muitos de vós perguntarão como é que esta combinação improvável surgiu, mas a verdade é que não sabemos. Pode ter sido um chef local que teve uma boa ideia e a ideia propagou-se, ou pode ser uma influência da América do Sul de ter plátano a acompanhar o prato principal … ou uma combinação de ambos? A contribuição moderna é a adição de maracujá, o que parece lógico já que a acidez da fruta corta o sabor frito do peixe que muitas vezes é frito com um polme. Outro favorito é a comida de ressaca: nada sabe melhor depois de dançar a noite toda do que um papo-seco crocante e fresco com um filete de espada e um pouco de alface e tomate. Ou outra opção no prato enganador chamado Espada Camarão, onde o peixe é cortado em tiras finas, passado no polme e depois se enrola na forma de camarão quando é frito. A sua carne leve e delicada é perfeita para soufflé de peixe, as suas cabeças fazem uma sopa deliciosa e as ovas podem ser fritas e são o melhor acompanhamento para uma cerveja gelada ao final do dia. Um pouco como é o bacalhau em Portugal continental, onde dizem que existem 1000 formas de o preparar, assim é a espada na Madeira!
Bom proveito, seja qual for a maneira que experimentem primeiro, garantimos que vão prová-la novamente!
Descubra alguns restaurantes onde poderá encontrar este peixe delicioso, o nosso fantástico peixe-espada, aqui.
NB: Pode surgir alguma confusão devido à proximidade da palavra espada com a palavra espetada. Ambas são especialidades locais onipresentes nos cardápios: Espada é o peixe-espada preto e Espetada é basicamente alguma coisa no espeto, mas geralmente significa pedaços de carne de vaca temperada com sal e louro grelhados no espeto sobre as brasas. No entanto, podem comer outros tipos de espetada: frango, marisco e, ocasionalmente, até adivinhou: Espetada de espada!
08 julho 2021
Um “monstro” delicioso das profundezas da Madeira – O nosso Peixe-Espada Preto
09:50
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