11 julho 2015

Dados para a história da alimentação na Madeira

12:51



No mundo actual a culinária adquiriu elevado requinte. A sociedade chamada de consumo universalizou os nossos hábitos gastronómicos. Os hipermercados, os restaurantes são a expressão disso e ninguém os dispensa. O acto de comer deixou de ser uma necessidade fisiológica para se tornar um prazer. O requinte da cozinha, a arte e mestria dos cozinheiros assim o demonstram.
A mesa transformou-se num espaço importante. À mesa selam-se contratos, decidem-se os destinos de um país, ou celebra-se um evento particular. Ainda há bem pouco tempo a inauguração da Ponte Vasco da Gama fez-se com uma monumental feijoada.
A nossa culinária não está alheia a esta realidade. Ela é fruto duma herança europeia dos colonos que lançaram a semente no séc. XV e dos demais que foram atraídos pela sua magia e beleza. Os ingleses são os segundos descobridores da ilha e aqueles que mais influência nos legaram. A mesa torna-se variada, ajusta-se ao paladar dos convivas e à disponibilidade dos produtos. A posição da ilha, o seu protagonismo histórico contribuíram para a sua afirmação desde o séc. XV e definiram uma evolução peculiar da mesa.
Por outro lado não é fácil conhecer a culinária madeirense de outros tempos. Carecemos de tratados de culinária e de textos que retratem as ambiências quotidianas, e acima de tudo, caseiras, até meados do séc. XVII. Perante isto, poderá optar-se por soluções alternativas, como o recurso aos livros de despesa com os doentes do hospital da Misericórdia do Funchal ou dos conventos. Neste último caso, temos o livro de Eduarda de Sousa Gomes sobre o Convento da Encarnação do Funchal. Como a prova disso, a documentação permite estabelecer a ementa diária do convento e do nível das rações diárias de carne e peixe. Também aqui é evidente uma diferenciação social forte na mesa. Enquanto as freiras se deliciam com as carnes de vaca e galinha, o peixe nos dias de jejuns e as diversas guloseimas da doçaria, aos servos e trabalhadores da cerca do convento apenas chega o milho e o centeio. Na verdade, a diferenciação social, que marcou de forma evidente estas históricas sociedades, teve na mesa uma expressão muito evidente.
Os forasteiros, de passagem ou em busca de cura para a tísica pulmonar, isto nos séculos XVIII e XIX, são os criadores e apreciadores da nossa gastronomia. Habituados às lautas mesas, reprovam a frugalidade da mesa rural. O gáudio está no Funchal, nos salões das quintas ou do Palácio do Governador. Assim, em 1793, saiu da ilha agradado com a mesa do governador da ilha, D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho “A sua mesa é uma das mais variadas e delicadas e em poucas partes do mundo se poderia apresentar cousa semelhante. Travessas esplêndidas sustentam animais inteiros; ali deparei com um porquinho recheado, rodeado de laranjas, uma lebre armando um salto, faisões tentando levantar voo, ornados com a sua vistosa e flamejante plumagem”. 
Esta opulência contrastava com a frugalidade da alimentação do povo, Diz-nos George Forster que “os camponeses são excepcionalmente sóbrios e frugais; a alimentação consiste em pão, cebolas, vários tubérculos e pouca carne”.
Na verdade, a mesa madeirense foi sempre muito frugal, situação que era quebrada nos momentos festivos, nomeadamente no Natal, Espírito Santo e festividades em honra dos diversos oragos das paróquias da ilha. É em torno do calendário religioso que o madeirense estabelece os vários momentos que marcam a sua gastronomia. 


Para ele, o Natal é a festa, isto é, o momento mais importante do ano da vivência festiva quotidiana. A devoção religiosa mistura-se com os folguedos e as delícias da mesa. A tradição anota mesmo um calendário para este ritual. A 8 de dezembro faz-se o bolo de mel. A 15 de Dezembro mata-se o porco de modo a que as linguiças e a came de vinho e alhos estejam prontas para o Natal. Neste dia no regresso da Missa do Galo, prova-se a carne. A mesa mantém-se farta de licores, doces e bolos para gáudio dos que estão e dos visitantes. O caldo de galinha caseira e a carne assada completavam o repasto natalício. Depois, o calendário religioso e o ano agrícola estabeleciam o resto. Na Sexta-feira Santa é tradição o inhame cozido com bacalhau, no S. Martinho o atum salpresado. Hoje, todavia este calendário gastronómico perdeu algumas das suas razões de ser. As atuais técnicas de conservação dos produtos, a atual sociedade de consumo permitem que a disponibilidade dos produtos e o seu consumo percam a sazonalidade.
A tradição estabeleceu a matriz, mas os diversos contatos e a presença de forasteiros vieram quebrar a monotonia da ementa diária e transformar o acto de comer. A ilha, terra de passagem de gentes, assistiu também à movimentação e descoberta do mundo animal e vegetal. A ilha foi, na verdade, o espaço de passagem das plantas do continente Europeu para o novo mundo e vice-versa. Da Europa chegaram à ilha os cereais, a vinha e a cana de açúcar. Os dois primeiros por exigência da cultura cristã. A América e a África revelaram-se aos europeus pela sua peculiaridade e variedade dos frutos. Os descobrimentos peninsulares foram também a descoberta disso.
Aos poucos a mesa europeia torna-se rica e variada. Cedo o ocidental assimilou aquilo que foi encontrado. A aventura marítima dos homens foi acompanhada de perto pela das plantas. Pimentos, feijão, mandioca, amendoim, chocolate, café, chá, baunilha, ananás, banana, milho e batata chegam á mesa europeia. A nossa variedade de frutos é resultado disso. A viagem de Vasco da Gama (1497-1499) veio contribuir para a generalização do consumo das especiarias, já conhecidas dos europeus, mas só agora com uma rota segura da sua divulgação. Assim ao tradicional açafrão, a mesa apura-se com as pimentas orientais.
Por muito tempo alguns produtos foram identificados com determinadas regiões, A maçã apela-nos a grande metrópole de Nova Iorque, enquanto o ananás nos recria as paradisíacas ilhas do Havai. Mas tudo terá mudado a partir do séc. XVIII. A alimentação progrediu e as ementas universalizaram-se. Os produtos perderam o selo de identidade de origem e entraram definitivamente no quotidiano. A mesa do mundo ocidental uniformiza-se. As divergências e o exotismo sucedem no confronto com outras culturas, como o mundo árabe e as regiões orientais.
É neste longo processo de transformação que se enquadra a afirmação da batata, que teve na Irlanda o principal centro difusor do tubérculo descoberto no novo mundo. Entre nós, a sua generalização aconteceu em princípios do séc. XIX, mas de imediato se transformou no produto preferido da mesa de subsistência madeirense, retirando lugar aos cereais.
Em 1842 o míldio atacou a batata irlandesa, provocando uma das maiores mortandades na população, que se repercutiu noutros espaços europeus. A Madeira foi vítima dessa situação entre 1846 e 1847. A fome vitimou milhares de madeirenses e forçou outros tantos à emigração. Note-se que esta situação conduzirá inevitavelmente a uma outra revolução alimentar com a plena afirmação do milho na dieta popular. Este, sob a forma de pão ou de farinha, transformou-se rapidamente na base da mesa madeirense na primeira metade do nosso século, apenas as guerras mundiais condicionaram o seu consumo e conduziram a novas crises de fome.
Hoje a nossa culinária é resultado dessa herança cultural dos colonos europeus, das aportações dos forasteiros e rotas marítimas. Os cereais perduram sob a forma de pão ou diferentes formas de cozinhado. O milho conhece-se hoje mais como frito do que como papas. A batata persiste na mesa. E a sobremesa é hoje a mais requintada e rica, quer em aromas e sabores. Tudo isto obra da Natureza e do Homem.

BIBLIOGRAFIA
AMORIM, Roby, Da mão à boca. Para uma his- tória da Alimentação em Portugal, Lisboa, 1987
ARNAUT, Salvador Dias, A Arte de comer em Portugal na Idade Média, Lisboa, 1986 Cousas e Lousas das cozinhas madeirenses, Funchal, 1987

GOMES, Eduarda de Sousa, O Convento da Encarnação do Funchal, Subsídios para a sua história, 1660, 1777, Funchal, 1995
PORTO DA CRUZ, Visconde do, A culinária Madeirense, in Das Artes e da História da Ma- deira, no33, 1963

RITCHIE, Larson, I. A. A Comida e civilização de como a História foi influenciada pelos gostos humanos, Lisboa, 1995
SARMENTO, Alberto A., À sobremesa, três frutos exóticos, Funchal, 1945). 


Fonte: Jornal da Madeira, 11 de Julho de 2015

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