Para ele, o Natal é a festa, isto é, o momento
mais importante do ano da vivência festiva quotidiana. A devoção religiosa mistura-se com os
folguedos e as delícias da mesa. A tradição anota
mesmo um calendário para este ritual. A 8 de
dezembro faz-se o bolo de mel. A 15 de Dezembro mata-se o porco de modo a que as linguiças
e a came de vinho e alhos estejam prontas para
o Natal. Neste dia no regresso da Missa do Galo,
prova-se a carne. A mesa mantém-se farta de licores, doces e bolos para gáudio dos que estão
e dos visitantes. O caldo de galinha caseira e a
carne assada completavam o repasto natalício.
Depois, o calendário religioso e o ano agrícola estabeleciam o resto. Na Sexta-feira Santa é tradição o inhame cozido com bacalhau, no S. Martinho o atum salpresado. Hoje, todavia este
calendário gastronómico perdeu algumas das
suas razões de ser. As atuais técnicas de conservação dos produtos, a atual sociedade de
consumo permitem que a disponibilidade dos
produtos e o seu consumo percam a sazonalidade.
A tradição estabeleceu a matriz, mas os diversos contatos e a presença de forasteiros vieram
quebrar a monotonia da ementa diária e transformar o acto de comer. A ilha, terra de passagem de gentes, assistiu também à movimentação e descoberta do mundo animal e vegetal. A
ilha foi, na verdade, o espaço de passagem das
plantas do continente Europeu para o novo
mundo e vice-versa. Da Europa chegaram à ilha
os cereais, a vinha e a cana de açúcar. Os dois
primeiros por exigência da cultura cristã. A
América e a África revelaram-se aos europeus
pela sua peculiaridade e variedade dos frutos. Os
descobrimentos peninsulares foram também a
descoberta disso.
Aos poucos a mesa europeia torna-se rica e
variada. Cedo o ocidental assimilou aquilo que foi
encontrado. A aventura marítima dos homens
foi acompanhada de perto pela das plantas. Pimentos, feijão, mandioca, amendoim, chocolate,
café, chá, baunilha, ananás, banana, milho e batata chegam á mesa europeia. A nossa variedade de frutos é resultado disso. A viagem de
Vasco da Gama (1497-1499) veio contribuir
para a generalização do consumo das especiarias, já conhecidas dos europeus, mas só agora
com uma rota segura da sua divulgação. Assim
ao tradicional açafrão, a mesa apura-se com as
pimentas orientais.
Por muito tempo alguns produtos foram identificados com determinadas regiões, A maçã
apela-nos a grande metrópole de Nova Iorque,
enquanto o ananás nos recria as paradisíacas
ilhas do Havai. Mas tudo terá mudado a partir do
séc. XVIII. A alimentação progrediu e as ementas
universalizaram-se. Os produtos perderam o selo de identidade de origem e entraram definitivamente no quotidiano. A mesa do mundo ocidental uniformiza-se. As divergências e o exotismo sucedem no confronto com outras
culturas, como o mundo árabe e as regiões
orientais.
É neste longo processo de transformação que
se enquadra a afirmação da batata, que teve na
Irlanda o principal centro difusor do tubérculo
descoberto no novo mundo. Entre nós, a sua generalização aconteceu em princípios do séc. XIX,
mas de imediato se transformou no produto
preferido da mesa de subsistência madeirense,
retirando lugar aos cereais.
Em 1842 o míldio atacou a batata irlandesa,
provocando uma das maiores mortandades na
população, que se repercutiu noutros espaços
europeus. A Madeira foi vítima dessa situação
entre 1846 e 1847. A fome vitimou milhares de
madeirenses e forçou outros tantos à emigração. Note-se que esta situação conduzirá inevitavelmente a uma outra revolução alimentar
com a plena afirmação do milho na dieta popular. Este, sob a forma de pão ou de farinha, transformou-se rapidamente na base da mesa madeirense na primeira metade do nosso século,
apenas as guerras mundiais condicionaram o
seu consumo e conduziram a novas crises de
fome.
Hoje a nossa culinária é resultado dessa herança cultural dos colonos europeus, das aportações dos forasteiros e rotas marítimas. Os cereais perduram sob a forma de pão ou diferentes
formas de cozinhado. O milho conhece-se hoje
mais como frito do que como papas. A batata
persiste na mesa. E a sobremesa é hoje a mais
requintada e rica, quer em aromas e sabores.
Tudo isto obra da Natureza e do Homem.
BIBLIOGRAFIA
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Fonte: Jornal da Madeira, 11 de Julho de 2015