26 março 2017

Comeres de Antigamente

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Comeres de Antigamente 


Ao almoço, por volta das dez da manhã, era "pão preto com café de cevada". Alguns tinham manteiga feita em casa mas a maioria só via manteiga pela Festa. Ao jantar, às três da tarde, era quase sempre milho. Depois, à ceia, "comia-se milho frio aos pedaços com caldeira de espada ou milho frito com café".
As refeições revestiam-se sempre de um significado especial. A velha cozinha, de paredes mascarradas pelo fumo, enchia-se de vida. A mãe rodopiava para cá e para lá, ora tirando o milho da panela de ferro, ora assando nas brasas um bocado de bacalhau...
Falava-se de tudo, desde os namoricos às costumeiras bilhardices das vizinhas. Ou da partida de um dos filhos para uma terra qualquer. Maria continuava a lidar com desembaraço e enquanto soprava o lume no lar limpava algumas lágrimas com as costas da mão. A vida que se aceita com naturalidade, quase resignação. Refeições simples, de quem não tinha muito, mas saboreadas com alegria.
O milho foi durante muito tempo a base da alimentação do povo dos nossos campos. Era comprado nas vendas e depois de escolhido mandava-se as pequenas ao moinho. Sacos à cabeça, vestidos de chita e pés descalços, lá iam elas pela tarde fora. Aproveitavam para, na volta, trazer o saco da farinha pois o trigo lá ficara na semana anterior à espera que a moleira tivesse tempo para satisfazer todas as encomendas.
Às vezes remediavam-se mesmo em casa, estreçoando o milho no moinho de mão e cozendo-o com semilhas e feijão.
Milho e cavalas com molho de vilão
"Cozia-se milho com couves migadas e às vezes também se cozia couves em separado para comer com o milho", diz-nos Maria de Ornelas. Mas podia ser outra coisa qualquer: agriões frescos da ribeira, saramagos (uma planta que abundava pelas chamuscas), cebola ou um bocado de bacalhau assado, que os mais pequenos iam de carreira buscar enquanto o milho fervia. No Verão bastavam umas ameixas, apanhadas de uma das ameixeiras debruçadas no terreiro.
O melhor era milho com peixe: chicharros ou cavalas com molho de vilão, conforme trouxesse o pesquito e o preço a que estivessem. "Os pesquitos passavam quase todos os dias, com as selhas à cabeça, vindos do lado de Câmara de Lobos..." Até que se deixou de ouvir o pregão que faziam, enquanto pousavam as selhas num cabeço, aguardando compradores.
Também se cozia massa, que muitas vezes ficava para a ceia ou para o outro dia, com um bocado de carne de porco, feijão, semilha, maçarocas, mogangas, enfim, "tudo o que houvesse na fazenda". 
O Natal sempre foi época privilegiada no que toca à alimentação. Tudo o que não se podia comer durante o ano vinha à mesa pela Festa. "Era uma alegria!" – recordam os antigos. Na matança do porco os petiscos corriam. Copos de vinho, sarapatel e outros dentinhos eram distribuídos com abundância aos convidados que, numa só noite, percorriam várias casas do sítio "nas funções da morte do porco". Cada um levava um pedaço de carne e a restante ficava na cartola à espera de ser cozinhada. "Enquanto houvesse torresmos não se comia milho nem batatas sem nada". Tudo aproveitado: a banha para tempero, as tripas para cozer com arroz, o bucho para rechear. 
<>"Pão duro com água – de - alhos" 
Tudo na sua época: semilhas no Verão, batatas no Inverno. As batatas iam-se cozendo com casca para descascar depois e comer com carne de porco, com torresmos – quando os havia – ou mesmo sem nada. "Comia-se o último pedaço de carne de porco no primeiro de Maio." Começava então a época do atum. "Como era quase dado porque havia muito comprava-se bastante e salgava-se. Naquele tempo não havia frigoríficos." Pelo São João era atum cozido com semilhas tenras ou o famoso atum salprezado. Depois variava-se entre o atum assado, atum de escabeche ou os bifes de atum.
Fim-de-semana: a amassadura de uma fornada de pão tinha o seu próprio ritual, desde o simples ir à lenha, ao esquentar do forno, amassar, tender... Azáfama de mulheres enchendo a cozinha e crianças dentro e fora, à espera do brindeiro do costume.
"Era pão para a semana inteira. Quando ficava duro fazia-se açorda, água – de - alhos ou água - de – semilhas." A água – de – alhos, bem temperada com banha de porco, aparecia quase diariamente na mesa dos camponeses, substituindo muitas vezes o café. Servia para comer com batatas, com bolo – do – caco, com pão já meio duro, ou para fazer sopas de milho frio.
"No tempo da guerra, quando os vapores não chegavam, era tudo racionado" – conta Maria Ornelas, 86 anos, residente no Sítio da Ribeira dos Pretetes, Caniço. "Vinha uma coisinha a cada vendeiro, que vendia só uma certa quantia a cada casal..." Lembra-se bem: "Houve um tempo que era só arroz porque não havia massa nem milho. Quando havia bastante leite de cabra até se cozia arroz com leite, para ficar mais saboroso."
Manhã cedo passava o leiteiro. Ombros curvados sob o peso do cajado, barrete na cabeça e pau na mão, pousava as folhas e as medidas e tinha sempre tempo para uma troca de palavras.
"O leite de vaca era para quem estava doente ou para quem tinha pequenos pequeninhos." Em casa de Maria Ornelas evocam-se os nomes dos leiteiros, figuras de um passado distante tornado perto: " Primeiro era o Luís do China, depois o Fortunato, o Luís dali de além, o Funil, da Ribeirinha. O ultimo foi aquele do Maluco."
"Um caldinho de galinha para o doente"
<> De tempos em tempos passava o capoeiro gritando: "Há galinhas que venda?" Maria "largava o bordado da mão", enquanto as filhas continuavam fazendo tela ou gastando umas linhas num maço de lenços. O capoeiro discutia o preço das galinhas e acabava por ajudar a apanhá-las. Pendurava-as pelos pés no cajado e ia a pé vendê-las à cidade. "Era conforme, uma galinha podia ser oito ou dez patacas..." Eram quase todas para vender mas quem estava doente tinha direito a um caldinho de galinha. De resto, tratava-se de um manjar apenas para dias especiais como a primeira oitava da Festa quando toda a família era convidada para ver a lapinha.

Com os ovos acontecia a mesma coisa pois passava uma mulher que os comprava e mais uns tostões faziam sempre jeito. Em tempos difíceis a carne de vaca não era muito usual mas muitos chefes de família chegavam a casa ao domingo, depois de cumprido o dever da missa, "com um bocado de carne dentro de um lenço da mão grande porque naquele tempo ainda não havia sacos de plástico." E quantas vezes José chegava da cidade - onde ia vender lenha - já às tantas, e com duas espadas enroladas e enfiadas num pau!
Os calores do verão amareleciam as searas nas fazendas e nas chamuscas. Grupos de mulheres e raparigas iam ganhar dias na ceifa. Vozes claras enchiam o ar. Cada uma levava a sua cesta com o almoço: "Semilhas tenras com oregos e com bacalhau , às vezes milho cozido na véspera ou sopa de massa com feijão tenro." O jantar era, quase sempre, transportado até ao local pelos mais pequenos: "Um bocado de pão – de - casa ou bolo - do - caco com sopa de massa."
Parte do trigo era guardada para nova sementeira e o restante ficava armazenado em sacas ou na caixa à espera das suas muitas aplicações. A sopa de trigo – trigo pisado com o pisão e depois cozido com semilha, feijão, abóbora, etc.. – e o frangolho eram pratos comuns que aos poucos foram desaparecendo do uso diário. Com a farinha que todas as semanas se trazia do moinho confeccionava-se, para além do pão - de – casa, o bolo – do – caco e as fornadas de bolo doce e de broas de coco e de mel em vésperas da Festa. Fazia-se mesmo "papas de farinha com açúcar por cima, para o almoço" e quando não havia cevada para café "torrava-se trigo e moía-se com uma garrafa para remediar". Com o centeio era costume fazer-se pão, cevadinha ou gófio.
Certas épocas do ano são ainda hoje assinaladas pela nossa velha tradição gastronómica: a carne-de-vinho-e-alhos, as broas e os licores caseiros pela Festa , as malassadas pelo entrudo, o inhame na Sexta-feira Santa, castanhas pelo Pão-por-Deus, atum com semilhas na noite de São João, bacalhau pelo São Martinho. Mas no dia-a-dia a realidade é hoje bem diferente. Temos agora outros hábitos alimentares, originados por um novo contexto económico-social e sobretudo pelas exigências da vida moderna. (......) 
Lília Mata In "Diário de Notícias", 24 de Abril de 1989
<>Nota:
As informações que permitiram a realização deste trabalho foram recolhidas em Abril de 1989 no Sítio da Ribeira dos Pretetes, Caniço. As informadoras foram Maria de Jesus Ornelas, já falecida, e suas filhas Salomé Fernandes, também já falecida e Justina Magna de Ornelas Fernandes, actualmente com 64 anos. 

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