26 novembro 2022

"A morto do porco"

19:11




Artigo de opinião escrito por Gil Rosa in JM-Madeira.

Era uma festa. Um dia especial. Mesmo muito especial.

Lá em casa a matança do porco implicava muito trabalho nos dias que a antecediam. Desde logo era necessário fazer pão. Havia que tratar de uma ou mais amassaduras para esses dias de autêntica festa.

Um processo que implicava um ritual apropriado que passava pela cozedura de batatas, preparação da levedura e da lenha para o forno. Tudo era feito no tempo certo para que no fim saísse o melhor pão.

Nos dias que antecediam a matança do porco, também eram aproveitados para grandes operações de limpeza. Havia que lavar terreiros e uma limpeza geral em toda a casa. Tudo tinha de estar no ponto para aqueles dias.

Para a matança do porco também se procedia à cozedura duma panela de inhame. O inhame era uma das iguarias distintivas da festa que era a morte do porco. Cozer inhame implicava muito saber e muita paciência. O tubérculo ficava 24 horas a cozer num lar em lume brando. Era necessário estar constantemente a controlar a água e o lume debaixo da panela. Se algo fugisse do controlo, podia dar produto queimado. O pão do inhame era preparado nas vésperas da matança do porco.

Chegado o dia, era hora de começar a operação.

Logo pela manhã começavam a chegar os homens convidados para a função. Com eles vinha o marchante que, no fundo, era o especialista que trazia a sabedoria para proceder ao abate do animal.

Antes da operação havia um pequeno-almoço reforçado com café e pão de casa. Depois era tempo de toda a gente se dirigir para o chiqueiro onde estava o animal.

Aí começavam os palpites sobre o peso do porco. Por norma eram animais de grande porte que ultrapassavam sempre os 200 quilos. Depois um dos “especialistas” saltava para dentro do chiqueiro para proceder à preparação. Tinha de passar uma corda pelas patas do animal, para garantir segurança máxima na hora do abate. Depois disso era hora de tirar o porco para o terreiro que já estava preparado para a operação. Com vários homens a segurar procedia-se ao abate. Uma operação orientada pelo marchante. Depois do abate e do sangue aproveitado era tempo de começar a raspar o porco. Antes dos maçaricos a gás usava-se "feiteira" seca que era colocada em cima do porco para depois poder ser todo raspado. Entretanto, enquanto se fazia isso já começava a circular sangue frito que era acompanhado de um copo de vinho seco. Ao longo de todo este processo reinava sempre a boa disposição e sã convivência. Logo a seguir chegava o momento de dependurar o porco, abrir e tirar as tripas (debulho) que eram entregues às mulheres que logo avançavam para o processo de lavagem e raspagem na levada mais próxima. Finalizado todo este processo chegava a hora de almoço que era um dos momentos de grande confraternização entre amigos e vizinhos. No fundo, era também um dos rituais desta festa.

Para o almoço era tradição comermos o bacalhau de escabeche, batata-doce, semilhas, inhame.

A meio da tarde, as mulheres preparavam a “fressura”, com o coração, pulmões e fígado do porco que depois de preparada serviam acompanhado com pão caseiro, semilhas e inhame.

Entretanto, o porco ficava dependurado na loja de um dia para o outro. O processo de cortar o porco só acontecia no dia seguinte.

Normalmente era no domingo que se fazia essa operação que já contemplava a espetada com carne fresca e espetada de coiro de porco. Dividia-se o porco em partes previamente definidas, para poder ser depois salgado. A carne era colocada com muito sal num salgueiro. Era uma operação feita necessariamente por um especialista. A carne tinha de ficar bem protegida uma vez que seria para usar ao longo do ano. Separávamos a gordura do porco para fazer torresmos e aproveitar a banha.

Ao mesmo tempo, os homens preparavam-se para uma tarde de “biscas”. Um jogo de cartas que envolvia sempre muita competição. Mais para o fim do dia era a vez da carne na panela, carne da noite. Era uma espécie de carne de vinho e alhos feita na hora. Normalmente era carne com muito osso que era a mais saborosa. Depois de algumas horas a cozer era hora de comer. A carne era acompanhada com pão caseiro, semilhas e inhame e claro não faltava o vinho caseiro.

A festa prolongava-se noite dentro.


Fonte: JM-Madeira



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